O Surgimento da Terapia Familiar: Idéias Precursoras
A
terapia familiar evoluiu a partir de uma multiplicidade de
influências tendo recebido contribuições de diferentes áreas do
conhecimento. Desde o início da formulação da psicanálise, Freud
considerou e ressaltou em seus estudos as relações familiares. Em
"Fragmento da Análise de um Caso de Histeria" (1905), ele afirma que
devemos prestar tanto atenção às condições humanas e sociais dos
enfermos quanto aos dados somáticos e aos sintomas patológicos,
ressaltando que o interesse do psicanalista deve dirigir-se sobretudo
para as relações familiares dos pacientes.
Freud
faz referência à família em vários outros momentos de sua obra. Em
uma das suas Conferências ele se refere às resistências externas,
emergentes das circunstâncias do paciente, de seu ambiente, que
interferem no processo analítico e que podem explicar um grande
número de fracassos terapêuticos. Ressalta que, muitas vezes, quando a
neurose tem relação com os conflitos entre os membros de uma família,
os membros sadios preferem não prejudicar seus próprios interesses do
que colaborar na recuperação daquele que está doente. Todavia,
apesar da preocupação com as relações familiares e da importância que
atribui a elas, Freud, como sabemos, não desenvolveu uma teoria da
família nem tampouco uma técnica de atendimento familiar.
No
final da primeira metade do século, após a publicação em 1948, por
Norbert Wiener do livro Cybernetics, várias ciências começaram a
enfatizar os sistemas homeostáticos com processos de retroalimentação
(feedback) que tornam os sistemas autocorretivos. Assim,
desenvolvimentos teóricos da Biologia, da Sociologia, da Antropologia,
da Informática, da Teoria Geral dos Sistemas, influenciaram
significativamente as primeiras formulações da teoria e da técnica do
trabalho terapêutico com famílias.
Na
área "psi", podemos ressaltar algumas postulações teóricas de
autores que colaboram para o surgimento da terapia familiar. Um
importante precursor, sem dúvida, foi Adler que enfatiza, na sua
teoria do desenvolvimento da personalidade, a importância dos papéis
sociais e das relações entre estes papéis na etiologia da patologia.
Influenciado pelas teorias de Adler, Sullivan coloca que a doença mental
tem origem nas relações interpessoais perturbadas e que um
entendimento mais completo do indivíduo só pode ser alcançado no
contexto de sua família e de seus grupos sociais. Sullivan coloca,
assim, a patologia na relação, na dimensão interacional.
Paralelamente
a Sullivan, Frieda Fromm-Reichman estuda a relação mãe-filho como
possível fonte de patologia e formula o conceito de mãe
esquizofrenogênica para explicar, em termos etiológicos, a relação do
paciente esquizofrênico com sua mãe.
No
final da Segunda Guerra, surge o movimento das comunidades
terapêuticas, proposto por Maxwell-Jones, para a reformulação da
assistência psiquiátrica. O conjunto das relações imediatas do
paciente internado passou a ser considerado no seu tratamento. A idéia
fundamental é que a melhora do quadro clínico do paciente vai ocorrer
na medida em que ansiedades e conflitos surgidos nas relações entre
os membros da comunidade hospitalar possam ser trabalhados.
Em
seguida, Pichon-Rivière inclui a família na sua compreensão da
doença mental e desenvolve a noção de "bode expiatório" como
depositário da patologia que é de toda a família. Todos estes
movimentos, formulações teóricas e novas compreensões da patologia
propiciaram o surgimento dos primeiros estudos no campo da terapia
familiar propriamente dita.
No
início da década de 50, ao mesmo tempo em que crescia, a partir da
produção teórica, a consciência da importância da família no
desenvolvimento e na manutenção da patologia mental, a prática
clínica vigente era regida por regras que ressaltavam que o contato
com a família do paciente não deveria ser feito.
Esta
situação postergou a divulgação do trabalho clínico inicial com
famílias e tornou a pesquisa, neste período, o modo mais facilmente
aceitável de se atenderem famílias, facilitando a aprendizagem sobre
seu funcionamento e sobre as possibilidades terapêuticas de
atendimento conjunto. Assim, os primeiros autores importantes na área da
terapia familiar, produziram conceitos teóricos relevantes sobre
estrutura e dinâmica da família, ao longo do desenvolvimento de
grandes projetos de pesquisa. Esta pesquisa inicial foi realizada com
a população esquizofrênica, tendo em vista ser a esquizofrenia uma
doença freqüente, de longa duração, com alto índice de reincidência, e
muito resistente aos métodos terapêuticos vigentes. O problema
social dela decorrente justificou a aplicação de verbas públicas na
investigação desta patologia, o que ocorreu, neste momento, sobretudo
nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Dentre
os vários grupos de pesquisa que se organizaram, o grupo de Gregory
Bateson, cujo trabalho foi desenvolvido em Palo Alto, tem como
resultado, em 1956, a primeira publicação na área; o artigo clássico
intitulado "Toward a Theory of Schizophrenia" onde são
postuladas as bases familiares da etiologia da esquizofrenia e
formulado o conceito de duplo-vínculo. Segundo estes autores, para que
tenha lugar uma situação de duplo-vínculo são necessárias as
seguintes condições: duas pessoas com um alto nível de envolvimento
(em geral a mãe e o seu bebê); um paradoxo infringido pela mãe ao
bebê que é chamado de "vítima"; a repetição desta experiência que
passa a ser habitual; a impossibilidade da "vítima" de abandonar o
campo, ou seja, escapar ao paradoxo.
Aos
poucos, o foco destes estudos, inicialmente voltados para famílias
com pacientes esquizofrênicas foi se ampliando, abrangendo famílias
com pacientes neuróticos e eventualmente famílias sem patologias
sérias. Os trabalhos mostraram que os fenômenos descobertos nas
famílias esquizofrênicos eram elementos básicos na dinâmica familiar.
Constata-se que os mesmos princípios interacionais estavam presentes
em todas as famílias, embora em graus diferentes. A patologia não
representava (assim como não representa no indivíduo) uma situação
qualitativamente diferente, mas uma exacerbação de determinados
padrões.
O Campo da Terapia Familiar: Enfoque Sistêmico X Enfoque Psicanalítico
O Enfoque Sistêmico
Os
Estados Unidos, que estão agora na terceira geração de terapeutas
familiares, reclamam para si o pensamento sistêmico no trabalho
clínico com famílias. A partir da teoria geral dos sistemas e da
teoria da comunicação surgiram várias escolas de terapia familiar e
vários institutos e centros de atendimento e de formação foram criados.
Para
os teóricos da comunicação, qualquer comportamento verbal ou não
verbal, manifestado por uma pessoa - o emissor -em presença de outra -
o receptor - é comunicação. Ao mesmo tempo que a comunicação
transmite uma informação, ela define a natureza da relação entre os
comunicantes. Estas duas operações constituem, respectivamente, os
níveis de relato (digital) e de ordem (analógico) presentes em qualquer
comunicação. Quando estes dois níveis se contradizem, temos o
paradoxo. A comunicação paradoxal está na origem da patologia
familiar.
A
família é vista como um sistema equilibrado e o que mantém este
equilíbrio são as regras do funcionamento familiar. Quando, por algum
motivo, estas regras são quebradas, entram em ação meta-regras para
restabelecer o equilíbrio perdido.
A
terapia desenvolvida a partir deste enfoque enfatiza a mudança no
sistema familiar, sobretudo pela reorganização da comunicação entre
os membros da família. O passado é abandonado como questão central,
pois o foco de atenção é o modo comunicacional no momento atual. A
unidade terapêutica se desloca de duas pessoas para três ou mais à
medida em que a família é concebida como tendo uma organização e uma
estrutura. É dada uma ênfase a analogias de uma parte do sistema com
relação a outras partes, de modo que a comunicação analógica é mais
enfatizada que a digital.
Os
terapeutas sistêmicos se abstêm de fazer interpretações na medida em
que assumem que novas experiências - no sentido de um novo
comportamento que provoque modificações no sistema familiar - é que
geram mudanças. Neste sentido são usadas prescrições nas sessões
terapêuticas para mudar padrões de comunicação, e prescrições, fora
das sessões, com a preocupação de encorajar uma gama mais ampla de
comportamentos comunicacionais no grupo familiar. Há uma certa
concentração no problema presente, mas este não é considerado apenas
como um sintoma. O comportamento sintomático é visto como uma resposta
necessária e apropriada ao comportamento comunicativo que o provocou.
A
partir do enfoque sistêmico, várias escolas de terapia familiar se
desenvolveram, entre elas a Escola Estrutural, a Estratégia, a de
Milão e, mais recentemente, a Escora Construtivista.
Escola Estrutural
Minuchin
é o principal teórico da Escola Estrutural e para ele a família é um
sistema que se define em função dos limites de uma organização
hierárquica. O sistema familiar diferencia-se e executa suas funções
através de seus subsistemas.
As
fronteiras de um subsistema são as regras que definem quem participa
de cada subsistema e como participa. Para que o funcionamento
familiar seja adequado, estas fronteiras devem ser nítidas. Quando as
fronteiras são difusas, as famílias são aglutinadas; fronteiras
rígidas caracterizam famílias desligadas. Famílias saudáveis
emocionalmente possuem fronteiras claras.
A
estrutura não é, para Minuchin (1974), uma entidade imediatamente
acessível ao observador. É no processo de união com a família que o
terapeuta obtém os dados. A medida em que a terapia evolui, o
terapeuta coloca questões, identifica os padrões transacionais e as
fronteiras, levanta hipóteses sobre os padrões disfuncionais e obtém
assim um mapa familiar.
O
terapeuta deve ajudar a transformação do sistema familiar, e para
isto ele se une à família desempenhando o papel de líder, identifica e
avalia a estrutura familiar, e cria circunstâncias que permitam a
transformação da estrutura. As mudanças terapêuticas são alcançadas
através das operações reestruturadoras, tais como: a delimitação de
fronteiras, a distribuição de tarefas, o escalonamento do stress e
a utilização dos sintomas. A terapia estrutural é uma terapia de
ação, e o sintoma é visto como um recurso do sistema para manter uma
determinada estrutura.
Escola Estratégica
Jay Haley é um dos principais teóricos da Escola Estratégica juntamente com Jackson, Bateson, Weakland e Watzlawick.
Para
Haley (1976) o que caracteriza o sistema familiar é a luta pelo
poder. Ele utiliza o termo estratégico para descrever qualquer
terapia em que o terapeuta realiza ativamente intervenções para
resolver problemas.
A
visão estratégica define o sintoma como expressão metafórica ou
analógica de um problema representando, ao mesmo tempo, uma forma de
solução insatisfatória para os membros do sistema em questão.
Nesta
abordagem há uma orientação franca para o sintoma e os problemas são
vistos como dificuldades interacionais que se desenvolvem através da
superênfase ou da subênfase nas dificuldades de viver. A resolução
dos problemas requer a substituição dos padrões interacionais. A
abordagem terapêutica é pragmática: trabalham-se as interações e
evitam-se os porquês.
O
principal objetivo é mudar o comportamento manifesto do paciente.
São utilizadas instruções paradoxais que consistem em prescrever
comportamentos que, aparentemente, estão em oposição aos objetivos
estabelecidos, mas que visam a mudanças em direção a eles. A instrução
paradoxal é mais freqüentemente utilizada sob a forma de prescrição de
sintoma, isto é, encorajando-se aparentemente o comportamento
sintomático. Para Watzlawick et al (1967) o uso do paradoxo leva à
substituição do duplo vínculo patogênico por um duplo vínculo
terapêutico.
Escola de Milão
A
principal representante deste grupo é Mara Selvini Palazzoli que,
juntamente com Boscolo, Ceccin e Prata, fundou em 1967 o Centro para o
Estudo da Família. Partindo dos mesmos pressupostos teóricos da
Escola Estratégica, Palazzoli et al (1980) consideram que os problemas
que emergem quando os mapas familiares não são mais adequados, ou
seja, os padrões de comportamento desenvolvidos não são mais úteis
nas situações atuais. Dada a tendência à homeóstase, os problemas
surgem quando as regras que governam o sistema são tão rígidas que
possibilitam padrões de interação repetitivos, homeostáticos e vistos
como "pontos nodais" do sistema.
Um
princípio terapêutico fundamental para o grupo de Milão é a
conotação positiva dos comportamentos apresentados pela família.
Quando se qualificam como positivos os comportamentos sintomáticos,
motivados pela tendência homeostática do sistema e não os
comportamentos.
Outro
tipo de intervenção utilizada pelo grupo de Milão é o ritual
familiar, ou seja, uma ação ou uma série de ações das quais todos os
membros da família são levados a participar. A prescrição de um
ritual visa evitar o comentário verbal sobre as normas que perpetuam o
jogo em ação. No ritual familiar novas regras substituem tacitamente
as regras precedentes. Para elaborar um ritual o terapeuta deve ser
bastante observador e criativo. O ritual é rigorosamente específico a
uma determinada família.
Escola Construtivista
No
final da década de 70, utilizando os conceitos da cibernética de
segunda ordem e de sua aplicação aos sistemas sociais, surge a Escola
Construtivista. A partir da concepção de retroalimentação evolutiva
de Prigogine (1979), considera-se que a evolução de um sistema ocorre
através da combinação de acaso e história em que, a cada patamar,
surgem novas instabilidades que geram novas ordens, e assim
sucessivamente. Nesta perspectiva em que os sistemas vivos são
considerados como hipercomplexos e indeterminados, instabilidade e a
crise ganham um novo sentido no sistema familiar. A crise não é mais
um risco, mas parte do processo de mudanças, assim como o sintoma.
Assim,
os terapeutas de família da Escola Construtivista passam a
considerar a autonomia do sistema familiar partindo do estudo dos
sistemas auto-organizados, da cibernética de segunda ordem, e dos
sistemas autopoéticos postulados por Humberto Maturana (1990).
Ocorre,
neste enfoque, uma ruptura entre o sistema familiar/observado e o
terapeuta/observador. O sistema surge como construção de seus
participantes. O terapeuta estará interessado não mais no
comportamento a ser modificado, mas no processo de construção da
realidade da família e nos significados gerados no sistema. A ênfase é
deslocada do que é introduzido no sistema pelo terapeuta para aquilo
que o sistema permite a ele selecionar e compreender.
Alguns
terapeutas estratégicos podem ser citados como tendo incluído
posteriormente na sua prática o modo de pensar construtivista; entre
eles, os do grupo de Milão. Palazzoli et al (1980) estabelecem três
princípios indispensáveis ao trabalho terapêutico: a formação de uma
hipótese, a circularidade e a neutralidade. A hipótese formulada deve
ser testada ao longo da sessão; se rejeitada, o terapeuta procurará
outras, baseando-se nos dados obtidos na verificação da primeira
hipótese. Todas as hipóteses devem ser sistêmicas, ou seja, devem
incluir todos os membros da família e fornecer uma conjetura que
explique a função da relação. A circularidade diz respeito à
capacidade do terapeuta de conduzir a sessão baseando-se nos feedbacks
recebidos da família como resposta à informação que solicitou em termos
relacionais. A neutralidade consiste numa atitude de imparcialidade
do terapeuta que se alia a cada membro da família, neutralizando
qualquer tentativa de coalizão ou sedução de qualquer componente do
grupo familiar.
O
enfoque construtivista, proposto a partir de uma ótica sistêmica de
segunda ordem, questiona portanto o poder do terapeuta na terapia
familiar e as intervenções terapêuticas diretivas. A ênfase não é
colocada na pergunta, mas na construção da interação e a ação do
terapeuta pretende explorar as construções onde surgem os problemas.
O Enfoque Psicanalítico
A
terapia familiar de enfoque psicanalítico dá ênfase ao passado, à
história da família tanto como causa de um sintoma, quanto como um
meio de transformá-lo. Os sintomas são vistos como decorrência de
experiências passadas que foram recalcadas fora da consciência. O
método utilizado, na maior parte das vezes, é interpretativo com o
objetivo de ajudar os membros da família a tomar consciência do
comportamento passado, assim como do presente e das relações entre
eles.
Influenciados
pelo trabalho estritamente psicanalítico, desenvolvido na Clínica
Tavistock de Londres, Pincus & Dare (1978) formulam suas
hipóteses que fundamentam a prática clínica com famílias e casais a
partir de um grande interesse na trama inconsciente dos sentimentos,
desejos, crenças e expectativas que unem os membros de uma família
entre si e aos passados individuais e familiar.
Estes
autores interessam-se particularmente pelos efeitos dos segredos e
dos mitos na dinâmica familiar. Ressaltam que os segredos podem
pertencer a um membro da família, ou serem, tacitamente,
compartilhados com outros; ou, inconscientemente, endossados pelos
membros da família, de geração para geração, até se tornarem um mito.
Quando um membro da família desafia um segredo familiar, a atitude
dos outros membros também muda em relação ao segredo, o conluio é
rompido e novos fatos e fantasias vêm à tona. A partir da prática
clínica Pincus & Dare mostram como os segredos mais freqüentes e
mais cuidadosamente escondidos são aqueles que nascem de sentimentos
ou fantasias incestuosas.
O
enfoque psicanalítico em terapia familiar é denominado por Ruffiot
(1981) de grupalista e é inspirado na sua teoria e na sua prática,
por uma representação fantasmática e grupal do indivíduo no seio de
sua família. Assim, Ruffiot formula a hipótese de um aparelho
psíquico familiar a partir do modelo de aparelho psíquico grupai de
Kaës (1976). Ele estabelece uma relação entre aparelho psíquico do grupo
familiar e o aparelho psíquico primitivo do recém-nascido,
considerando que a natureza do psiquismo primário é o fundamento do
psiquismo familiar e de todo psiquismo grupai. Esta abordagem se
baseia numa escuta do funcionamento da fantasmática familiar no
aparelho psíquico da família, um inconsciente a várias vozes que
aparece na associação livre dos membros da família reunidos na sessão.
Eiguer
(1984) postula que a família compõem-se de membros que têm, em
grupo, formas típicas de funcionamento psíquico inconsciente que se
diferenciam do funcionamento de cada membro. Ele formula o conceito
de organizadores grupais para explicar os investimentos recíprocos
que ocorrem entre os membros da família e, ressalta a fantasia original
de castração como determinante da definição de diferença sexual,
derivando daí a delimitação dos papéis de pai, mãe, irmão, irmã. Para
Eiguer a fantasia original está na base dos vínculos, sendo portanto
ativadora como os investimentos narcísicos e objetais, e favorecendo
o reagrupamento interfantasioso.
Articulação dos Diferentes Enfoques
O
campo da terapia familiar, como vimos, apresenta um panorama muito
variado e complexo, não contendo um corpo teórico unificador ao qual
fazer referência.
Os
primeiros estudos que tinham como ponto de partida os trabalhos
sobre duplo-vínculo realizados pelo grupo de Palo Alto sobre a
esquizofrenia estiveram, por causa de seu caráter revolucionário, na
origem do desenvolvimento de uma oposição entre modelo psicanalítico e
modelo sistêmico. Estes estudos caracterizavam-se por uma abordagem
pragmática da realidade, e o modelo de psicanálise ao qual se opunham
era o modelo econômico de Freud. A verdadeira oposição não estava
portanto entre psicanálise e teoria sistêmica, ou entre indivíduo e
família, mas sobretudo entre conteúdos internos e comportamentos
expressos.
Alguns
terapeutas de família propõem um trabalho numa abordagem sistêmica
pura como Palazzoli (1978) e Haley (1976). Outros pretendem trabalhar
em terapia familiar numa abordagem psicanalítica sem nenhum suporte
sistêmico como Eiguer (1984) e Ruffiot (1981). Há entretanto autores
que tentam fazer uma síntese destas duas abordagens, no trabalho com
famílias e casais.
É
nesta possibilidade de síntese, de articulação dos dois enfoques,
que estamos sobretudo interessados. As vezes falta a algumas
abordagens psicanalíticas conceber a família como uma unidade
sistêmica indivisível. É essencial estudar a articulação entre o
indivíduo e seu grupo familiar levando em conta as descobertas mais
significativas das abordagens sistêmicas sem se tornar prisioneiro
das teorias.
Na
perspectiva sistêmica há uma preocupação com o comportamento e a
busca de modificá-lo, o que leva a uma desatenção em relação aos
processos psíquicos subjacentes, enquanto na perspectiva
psicanalítica há uma preocupação em expressar os desejos inconscientes
que estão na origem da disfunção familiar.
Mas
estas duas concepções teóricas e as práticas delas decorrentes não
podem deixar de considerar que a família e o casal são grupos
organizados, auto-reguladores, com uma linguagem própria, regras
próprias de funcionamento e mitos próprios.
Nicolló
(1988) fala de um rigor elástico, quer dizer, de uma atitude que
requer nas disciplinas psicológicas, a intuição, a subjetividade do
observador que são insubstituíveis para o conhecimento, quando
discute a possibilidade de articulação dos enfoques sistêmico e
psicanalítico em terapia familiar.
Lemaire
(1984) ressalta a necessidade de uma tríplice chave de leitura, no
trabalho com família e casal, que passa pelo intrapsíquico, pelo
sistêmico-interacional e pelo social. Para ele o fato, por exemplo,
de o terapeuta conjugal compreender psicanaliticamente os fenômenos
inconscientes das identificações projetivas que estão na base da
colusão narcísica do casal, não deve impossibilitá-lo de lançar mão de
desenvolvimentos teórico-técnicos das teorias sistêmicas. Ele pode,
ao mesmo tempo, trabalhar sobre a comunicação, as expressões
paradoxais, os duplo-vínculos, sem ser impedido de levar em conta
processos arcaicos inconscientes que estão em jogo desde o
estabelecimento da relação amorosa.
Dependendo
do tipo de demanda familiar, pode-se escolher um referencial de
compreensão mais sistêmico ou mais psicanalítico. É importante
escolher um quadro de pensamento, mas este não deve ser rígido pois
também, do nosso ponto de vista, a visão sistêmica e a visão
psicanalítica não se excluem mutuamente.
Sem
dúvida, consideramos importante a consistência entre teoria e
prática, a coerência com uma determinada posição epistemológica.
Entretanto, dentro de uma mesma posição epistemológica, incontáveis
modelos de atendimento são possíveis. Como ressalta Maturana (1990),
há diversos modos de fazer terapia e estes modos distintos têm a ver com
as distintas características dos terapeutas.